Estava o anel da noite solenemente posto no meu dedo
E a navegação do silêncio continuou sua viagem antiquíssima.
Sophia de Mello Breyner Andresen
VILLA ADRIANA
Na biblioteca latina
Adriano sentiu-se cansado pela primeira vez
e a harpa escura na magnólia
fez doer a tarde
seus olhos perdiam-se agora da soberania
quase voavam indigentes
na solidão sempre próxima do amor
Mário Rui de Oliveira
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se, a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo -
Raul de Carvalho
PARA QUE TÚ ME OIGAS...
Para que tú me oigas
mis palabras
se adelgazan a veces
como las huellas de las gaviotas en las playas.
Collar, cascabel ebrio
para tus manos suaves como las uvas.
Y las miro lejanas mis palabras.
Más que mías son tuyas.
Van trepando en mi viejo dolor como las yedras.
Ellas trepan así por las paredes húmedas.
Eres tú la culpable de este juego sangriento.
Ellas están huyendo de mi guarida oscura.
Todo lo llenas tú, todo lo llenas.
Antes de tí poblaron la soledad que ocupas,
y están acostumbradas más que tú a mi tristeza.
Ahora quiero que digan lo que quiero decirte
para que tú oigas como quiero que me oigas.
El viento de la angustia aún las suele arrastrar.
Huracanes de sueños aún a veces las tumban.
Escuchas otras voces en mi voz dolorida.
Llanto de viejas bocas, sangre de viejas súplicas.
Amame, compañera. No me abandones. Sígueme.
Sígueme, compañera, en esa ola de angustia.
Pero se van tiñendo con tu amor mis palabras.
Todo lo ocupas tú, todo lo ocupas.
Voy haciendo de todas un collar infinito
para tus blancas manos, suaves como las uvas.
Pablo Neruda
OLHANDO UMA AMEIXIEIRA NO TEMPLO DE YUSHI (1)
Um espesso tapete de oração
um tabique de papel novo
a este luxo prefiro a rima natural do vento
da minha trapeira contemplo a ameixieira como a um velho amigo
pousa nos seus ramos uma lua de gelo, as nuvens dispersaram-se
Zhang Kejiu
(1) Templo situado perto de Shaoxing, no Zhejiang
Não ser capaz de aceitar que o vazio, o desespero, o negativismo são detentores de um título tão legítimo como a romântica intensidade ética pela qual me deixei seduzir. [...] Questão de rugas, de fadiga, de fracassos nas provas do quotidiano. E o resto são desculpas. Exercícios inúteis como discutir com a chuva. Barragens contra o Pacífico. Entro numa cafetaria. Sento-me numa mesa. Peço um café. Não é permitido fumar. O novo puritanismo. Abomino as causas.
Paulo Castilho
            [PALAVRAS]
            Deixá-las que rompam da noite da vida
            para que suspendam a morte do dia.
            David Mourão-Ferreira
[...] de súbito, não sabe porquê, os sonhos tornam-se insuficientes. Agora há sempre uma larga margem de angústia branca, que se lhe enrola ao peito como uma serpente, que o aperta, que lhe corta a respiração e que faz doer. E já não só peito, é todo ele que é apertado, comprimido, por múltiplos, invisíveis anéis.
Maria Judite de Carvalho
        LAGAR
        As mães, e até as que não eram mães,
        achavam salutar que mergulhasses no mosto,
        na promessa apenas desse vinho tinto
        que ao enrijecer os músculos
        despertava a alma para infâmias e paixões.
        Que diriam agora, se o pudessem dizer,
        essas mães? Deixa, qualquer abismo serve:
        perdeste a infância e não encontraste o mundo.
        Manuel de Freitas
OS NOSSOS OLHOS
os nossos olhos
não envelhecem
mesmo a visão mais profunda
vê o mundo sempre igual
talvez com filtros de várias cores
mas por detrás dos olhos
temos sempre 17 anos
quando olhamos um espelho
é certo que aparece um desconhecido
mas a imagem que temos de nós
é a da época da esperança
sem plano definido
porém não somos só olhos
e o coração perdeu temperatura
o estômago não aceita fretes
temos ouvidos selectivos
as pernas escolhem as descidas
os ombros já não se encolhem
carregamos os sobrolhos
e o peito aumentou em capacidade
de amar
pela pélvis ainda moram
sensações antigas
e os pés, de chatos que são
contaminam por vezes o todo
no entanto
temos sempre 17 anos
2004 - carlos peres feio
cobria as mesas, emoldurava os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.
Sophia de Mello Breyner Andresen
A alma humana
Teixeira de Pascoaes
Para onde me levas?
Pedro Paixão
Canção da Plenitude
Não tenho mais os olhos de menina
Nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
Agrandada pelos anos e o peso dos fardos
Bons ou ruins.
(carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia)
O que te posso dar é mais que tudo
O que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
Quando em outros tempos choraria,
Busca te agradar
Quando antigamente quereria
Apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que a beleza
E juventude agora: esses dourados anos
Me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
E não menos ardor, a entender-te
Se precisas, a aguardar-te quando vais
A dar-te regaço de amante e colo de amiga,
E sobretudo a força- que vem do aprendizado.
Isso te posso dar: um mar antigo e confiável
Cujas marés- mesmo se fogem- retornam,
Cujas correntes ocultas não levam destroços
Mas o sonho interminável das sereias.
Lya Luft
Referi-me a
André Breton
nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida.
Eugénio de Andrade
como ficar-se um simples ingénuo por toda a vida é perder a ingenuidade para todo o resto da vida.
Almada Negreiros
E entreguei-me
- terás percebido isso? Deixei de saber quem era. Continuo a precisar de ti para existir. Para dormir. Um dia confessei-te que tinha insónias. Terei chegado a explicar-te que as Variações Goldeberg de Bach nasceram de um pedido do conde Kaiserling, que lhe solicitara um tratamento para as insónias? E que por isso Bach escreveu as variações de acordo com uma receita que exigia «uma invariabilidade constante da harmonia fundamental!»? Conversávamos pela noite dentro em tua casa, tu já mal conseguias manter as pálpebras levantadas. Pedi-te que me deixasses ficar mais um bocadinho, porque me custava entrar em casa sem sono. Pegaste-me na mão
- anda comigo
e levaste-me para a cama. Enroscaste-te em mim e começaste a coçar-me as costas, muito devagar. Dormimos muitas e muitas vezes assim - e nunca, nem por um segundo, pensámos em fazer aquilo a que os inocentes chamam sexo. Falávamos muito disso, sim - desse acto a que as pessoas vão chamando sexo ou amor consoante as conveniências e as circunstâncias. Esse acto que as pessoas vão repetindo até à mais exaustiva solidão. Nós não podíamos prescindir um do outro. Não podíamos entrar no infinito jogo finito do corpo. Derramei sobre a tua vida, por incontáveis noites, os meus breves amores perfeitos, pormenor a pormenor. E tu derramaste sobre a minha as tuas paixões impossíveis, impossíveis de apagar. Desejo-te tanto, ainda.
Inês Pedrosa