E entreguei-me

- terás percebido isso? Deixei de saber quem era. Continuo a precisar de ti para existir. Para dormir. Um dia confessei-te que tinha insónias. Terei chegado a explicar-te que as Variações Goldeberg de Bach nasceram de um pedido do conde Kaiserling, que lhe solicitara um tratamento para as insónias? E que por isso Bach escreveu as variações de acordo com uma receita que exigia «uma invariabilidade constante da harmonia fundamental!»? Conversávamos pela noite dentro em tua casa, tu já mal conseguias manter as pálpebras levantadas. Pedi-te que me deixasses ficar mais um bocadinho, porque me custava entrar em casa sem sono. Pegaste-me na mão
- anda comigo
e levaste-me para a cama. Enroscaste-te em mim e começaste a coçar-me as costas, muito devagar. Dormimos muitas e muitas vezes assim - e nunca, nem por um segundo, pensámos em fazer aquilo a que os inocentes chamam sexo. Falávamos muito disso, sim - desse acto a que as pessoas vão chamando sexo ou amor consoante as conveniências e as circunstâncias. Esse acto que as pessoas vão repetindo até à mais exaustiva solidão. Nós não podíamos prescindir um do outro. Não podíamos entrar no infinito jogo finito do corpo. Derramei sobre a tua vida, por incontáveis noites, os meus breves amores perfeitos, pormenor a pormenor. E tu derramaste sobre a minha as tuas paixões impossíveis, impossíveis de apagar. Desejo-te tanto, ainda.


Inês Pedrosa