mas sei...






mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores


Al Berto






'... na luz no mar no vento'




Tive amigos que morriam, outros que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz no mar no vento.


Sophia de Mello Breyner Andresen





AGOSTO - 19



em dó sostenido, para não chorar


Vitorino Nemésio





PRIMEIROS SOCORROS



A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?

Por vezes são estrelas que sobem
quando a água ocupa o espaço
e um brilho esquivo tropeça
no cansaço do dia

No chão ainda morno
ardem pétalas sossegadamente
e há a melancolia de um pássaro

Na varanda esquecida
por trás de toda a magia da noite
(há tanta solidão em quem repara)
dura um homem que diz baixinho
assim quase para fora

A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?


Vasco Gato


"espérance"







"... pedras autênticas"



Faça-se o que se fizer, reconstrói-se sempre o monumento à nossa maneira. Mas já é muito empregar somente pedras autênticas.


Marguerite Yourcenar, Apontamentos sobre as Memórias de Adriano
Tradução de Maria Lamas




"dinâmica do (des)entendimento"




dinâmica do (des)entendimento




"Porque o amor..."


- É verdade que o amo. Em todos os homens que há na minha vida procuro reconstituir a sua secreta gentileza. É um aspecto da sua personalidade que te escapa. Essa é a tua vantagem sobre mim. Não o compreendes. Não há nada de menos amorosamente estimulante para um homem do que uma mulher que o compreende. Eu nasci para compreender. Quer isto dizer que estou condenada a amar sem nunca receber a apaixonada retribuição dos meus sentimentos. Porque o amor, minha querida, é a dinâmica do desentendimento.


Natália Correia, A Madona



"mirario"



Se no Guadiana...



        Há uma loucura pobre


            Há uma loucura pobre,
            essa que se esmaga apenas no
            desejo, a mais impenetrável, a
            mais harmoniosa. Essa é
            a loucura mais próxima
            do segredo das árvores, dos
            enigmas, do corpo. Um
            lúcido delírio, dor
            inicial.


            Joaquim Pessoa, Por Outras Palavras


UM CAMINHO DE PALAVRAS








Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.


Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.


                              Caminho um caminho de palavras
                              (porque me deram o sol)
                              e por esse caminho me ligo ao sol
                              e pelo sol me ligo a mim

                              E porque a noite não tem limites
                              alargo o dia e faço-me dia
                              e faço-me sol porque o sol existe

                              Mas a noite existe
                              e a palavra sabe-o.



António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra





      FIM DE SEMANA



      'tranquillo'




          Estirado na areia, a olhar o azul,
          ainda me treme o parvalhão do corpo,
          do que houve que fazer para ganhar o nosso,
          do que houve que esburgar para limpar o osso,
          do que houve que descer para alcançar o céu,
          já não digo esse de Vossa Reverência,
          mas este onde estou, de azul e areia,
          para onde, aos milhares, nos abalançamos,
          como quem, às pressas, o corpo semeia.


          Alexandre O'Neill






'é um todo'




A vida, meu querido, é um todo.



A vida, meu querido, é um todo. A vida é um homem e uma mulher que se encontram porque são feitos um para o outro, porque são um para o outro o que a chuva é para o oceano: um volta sempre a cair dentro do outro, criam-se mutuamente, são a condição um do outro. Desse todo nasce uma harmonia, e é isso a vida. Uma coisa raríssima entre os seres humanos.[...] Eu procuro esse todo porque sei que nada mais há a fazer.


Sándor Márai








Vitae Summa Brevis Spem Nos Vetat Incohare Longam*


      They are not long, the weeping and the laughter,
      Love and desire and hate:
      I think they have no portion in us after
      We pass the gate.

      They are not long, the days of wine and roses:
      Out of a misty dream
      Our path emerges for a while, then closes
      Within a dream.


      Ernest Dowson


* Horácio