PRIMEIROS SOCORROS
A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?
Por vezes são estrelas que sobem
quando a água ocupa o espaço
e um brilho esquivo tropeça
no cansaço do dia
No chão ainda morno
ardem pétalas sossegadamente
e há a melancolia de um pássaro
Na varanda esquecida
por trás de toda a magia da noite
(há tanta solidão em quem repara)
dura um homem que diz baixinho
assim quase para fora
A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?
Vasco Gato
"... pedras autênticas"
Faça-se o que se fizer, reconstrói-se sempre o monumento à nossa maneira. Mas já é muito empregar somente pedras autênticas.
Marguerite Yourcenar, Apontamentos sobre as Memórias de Adriano
Tradução de Maria Lamas
Marguerite Yourcenar, Apontamentos sobre as Memórias de Adriano
Tradução de Maria Lamas
"Porque o amor..."
- É verdade que o amo. Em todos os homens que há na minha vida procuro reconstituir a sua secreta gentileza. É um aspecto da sua personalidade que te escapa. Essa é a tua vantagem sobre mim. Não o compreendes. Não há nada de menos amorosamente estimulante para um homem do que uma mulher que o compreende. Eu nasci para compreender. Quer isto dizer que estou condenada a amar sem nunca receber a apaixonada retribuição dos meus sentimentos. Porque o amor, minha querida, é a dinâmica do desentendimento.
Natália Correia, A Madona
- É verdade que o amo. Em todos os homens que há na minha vida procuro reconstituir a sua secreta gentileza. É um aspecto da sua personalidade que te escapa. Essa é a tua vantagem sobre mim. Não o compreendes. Não há nada de menos amorosamente estimulante para um homem do que uma mulher que o compreende. Eu nasci para compreender. Quer isto dizer que estou condenada a amar sem nunca receber a apaixonada retribuição dos meus sentimentos. Porque o amor, minha querida, é a dinâmica do desentendimento.
Natália Correia, A Madona
        Há uma loucura pobre
            Há uma loucura pobre,
            essa que se esmaga apenas no
            desejo, a mais impenetrável, a
            mais harmoniosa. Essa é
            a loucura mais próxima
            do segredo das árvores, dos
            enigmas, do corpo. Um
            lúcido delírio, dor
            inicial.
            Joaquim Pessoa, Por Outras Palavras
            Há uma loucura pobre,
            essa que se esmaga apenas no
            desejo, a mais impenetrável, a
            mais harmoniosa. Essa é
            a loucura mais próxima
            do segredo das árvores, dos
            enigmas, do corpo. Um
            lúcido delírio, dor
            inicial.
            Joaquim Pessoa, Por Outras Palavras
UM CAMINHO DE PALAVRAS
                              Caminho um caminho de palavras
                              (porque me deram o sol)
                              e por esse caminho me ligo ao sol
                              e pelo sol me ligo a mim
                              E porque a noite não tem limites
                              alargo o dia e faço-me dia
                              e faço-me sol porque o sol existe
                              Mas a noite existe
                              e a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra
Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
                              Caminho um caminho de palavras
                              (porque me deram o sol)
                              e por esse caminho me ligo ao sol
                              e pelo sol me ligo a mim
                              E porque a noite não tem limites
                              alargo o dia e faço-me dia
                              e faço-me sol porque o sol existe
                              Mas a noite existe
                              e a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra
      FIM DE SEMANA
          Estirado na areia, a olhar o azul,
          ainda me treme o parvalhão do corpo,
          do que houve que fazer para ganhar o nosso,
          do que houve que esburgar para limpar o osso,
          do que houve que descer para alcançar o céu,
          já não digo esse de Vossa Reverência,
          mas este onde estou, de azul e areia,
          para onde, aos milhares, nos abalançamos,
          como quem, às pressas, o corpo semeia.
          Alexandre O'Neill
A vida, meu querido, é um todo.
A vida, meu querido, é um todo. A vida é um homem e uma mulher que se encontram porque são feitos um para o outro, porque são um para o outro o que a chuva é para o oceano: um volta sempre a cair dentro do outro, criam-se mutuamente, são a condição um do outro. Desse todo nasce uma harmonia, e é isso a vida. Uma coisa raríssima entre os seres humanos.[...] Eu procuro esse todo porque sei que nada mais há a fazer.
Sándor Márai
Sándor Márai
Vitae Summa Brevis Spem Nos Vetat Incohare Longam*
      They are not long, the weeping and the laughter,
      Love and desire and hate:
      I think they have no portion in us after
      We pass the gate.
      They are not long, the days of wine and roses:
      Out of a misty dream
      Our path emerges for a while, then closes
      Within a dream.
      Ernest Dowson
* Horácio